Allan Kardec apresenta a
verdadeira face do desejado Céu, do temido Inferno, como também do chamado
Purgatório. Põe fim às penas eternas, demonstrando que tudo no universo evolui.
Lendo-se este livro com
atenção vê-se que a sua estrutura corresponde a um verdadeiro processo de
julgamento. Na primeira parte temos a exposição dos fatos que o motivaram e a
apreciação judiciosa, sempre serena, dos seus vários aspectos, com a devida
acentuação dos casos de infração da lei. Na segunda parte o depoimento das
testemunhas. Cada uma delas caracteriza-se por sua posição no contexto
processual. E diante dos confrontos necessários o juiz pronuncia a sua sentença
definitiva, ao mesmo tempo enérgica e tocada de misericórdia. Estamos ante um
tribunal divino.
Os homens e suas
instituições são acusados e pagam pelo que devem, mas agravantes e atenuantes
são levados em consideração à luz de um critério superior.
A 30 de Setembro de
1863, como se pode ver em Obras Póstumas, Kardec recebeu dos Espíritos
Superiores este aviso: "Chegou a hora de a Igreja prestar contas do
depósito que lhe foi confiado, da maneira como praticou os ensinamentos do
Cristo, do uso que fez de sua autoridade, enfim, do estado de incredulidade a
que conduziu os espíritos". Esse julgamento começava com a preliminar
constituída pelo Evangelho Segundo o Espiritismo e devia continuar com O Céu e
o Inferno. Dentro de dois anos, em seu número de Setembro de 1865, a Revista
Espírita publicaria em sua seção bibliográfica a notícia do lançamento do
quarto livro de Codificação Espírita: O Céu e o Inferno. Faltava apenas A
Gênese para completar a obra da Codificação da III Revelação.
Dois capítulos de O Céu
e o Inferno foram publicados antecipadamente na Revista: o capítulo intitulado
Da apreensão da morte, vigorosa peça de acusação, no número de Janeiro de 1865,
e o capítulo Onde é o Céu, no número de Março do mesmo ano. Apareceram ambos
como se fossem simples artigos para a Revista, mas o último trazia uma nota
final anunciando que ambos pertenciam a uma "nova obra que o Sr. Allan
Kardec publicará proximamente". Em Setembro a obra já aparece anunciada
como à venda.
Kardec declara que, não
podendo elogiá-la nem criticá-la, a Revista se limitava a publicar um resumo do
seu prefácio, revelando o seu conteúdo. Os capítulos antecipadamente publicados
aparecem, o primeiro com o mesmo título com que saíra e o segundo com o título
reduzido para O Céu.
Estava dado o golpe de
misericórdia nos dogmas fundamentais da teologia do cristianismo formalista,
tipo inegável de sincretismo religioso com que o Cristianismo verdadeiro,
essencial e não formal conseguira penetrar na massa impura do mundo e levedá-la
à custa de enormes sacrifícios. Kardec reafirma o caráter científico do
Espiritismo. Como ciência de observação a nova doutrina enfrenta o problema das
penas e recompensas futuras à luz da História, estabelecendo comparações entre
as idealizações do céu e do inferno nas religiões anteriores e nas religiões
cristãs, revelando as raízes históricas, antropológicas, sociológicas e
psicológicas dessas idealizações na formulação dos dogmas cristãos.
A comparação do inferno
pagão com o inferno cristão é um dos mais eficazes trabalhos de mitologia
comparada que se conhece. A mitologia cristã se revela mais grosseira e cruel
que a pagã. Bastaria isso para justificar o Renascimento. O mergulho da
humanidade no sorvedouro medieval levou a natureza humana a um retrocesso
histórico só comparável ao do nazi-fascismo em nosso tempo. Os intelectuais
materialistas assustaram-se com o retrocesso do homem nos anos 40 do nosso século
e puseram em dúvida a teoria da evolução. Se houvessem lido este livro de
Kardec, saberiam que a evolução não se processa em linha
reta; mas em ascensão espiralada.
Vemos assim que este
livro de Kardec tem muito para ensinar, não só aos espíritas, mas também aos
luminares da inteligência néo-pagã que perdem o seu tempo combatendo o
Espiritismo, como gregos e romanos combateram inutilmente o Cristianismo. O
processo espírita se desenvolve na linha de sequência do processo cristão. A
conversão do mundo ainda não se completou. Cabe ao Espiritismo dar-lhe a última
demão, como desenvolvimento natural, histórico e profético do Cristianismo em
nosso tempo.
A leitura e o estudo
sistemático deste livro se impõem a espíritas e não-espíritas, a todos os que
realmente desejam compreender o sentido da vida humana na Terra. Mesmo entre os
espíritas este livro é quase desconhecido. A maioria dos que o conhecem nunca
se inteirou do seu verdadeiro significado. Kardec nos dá nas suas páginas o
balanço da evolução moral e espiritual da humanidade terrena até os nossos
dias. Mas ao mesmo tempo estabelece as coordenadas da evolução futura. As penas
e recompensas de após a morte saem do plano obscuro das superstições e do
misticismo dogmático para a luz viva da análise racional e da pesquisa científica.
É evidente que essa pesquisa não pode seguir o método das ciências de
mensuração, pois o seu objetivo não é material, mas segue rigorosamente as
exigências do espírito científico moderno e contemporâneo.
O grave problema da continuidade
da vida após a morte despe-se dos aparatos mitológicos para mostrar-se com a
nudez da verdade à luz da razão esclarecida.
Por José Herculano
Pires, na introdução de O Céu e o Inferno
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